Pegue, por exemplo, a famosa frase – “a mulher que andava na linha o trem pegou”.
Parece exemplo de humor transgressor, não?
Desmoraliza, no duplo sentido de “linha”, uma ordenação moral, reconhecendo a vigência de práticas de vida social mais relaxadas (do que as do coronelato, pelo menos).
Ao mesmo tempo, confirma a noção do que seja “andar na linha” - para a mulher. Se para o homem isso equivale a uma ética em relação ao mundo, às leis, aos impostos etc.; para ela, tudo se refere à honra de seu marido e dono.
Assim, a frase humorística, ao mesmo tempo, avacalha e reforça a ordem estabelecida.
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Mas essa frase é só humor, até que se enxergue o contrário.
O problema é esse “só, Danniel. Tudo é “só” humor, o “só” funciona como um escudo contra qualquer outra visão - que passa a ser vista como “o contrário”, e não como algo que aprofunda.
... eu demorei um pouco a entender, mas esse ponto é muito interessante: existem "avacalhações" que, na verdade, reforçam aquilo que avacalham.
É importante apontar isso, pois é algo que muitas pessoas não percebem.
este só-humor quer dizer que o humor só existe enquanto manter o lugar ileso da piada - nem que ela seja feita na base da ironia, pobreza maior de qualquer expressão humorística. humor ácido, humor transgressor, humor negro, vários nomes para o mesmo: humor conservador. ridendo castigat mores é uma mentira.
Segue um texto do Francisco Bosco sobre humor e TV para agregar à discussão (saiu no Globo, se não me engano):
Palhaços e caras-pálidas - Francisco Bosco
Sou um adepto do humor de linguagem, de duplos sentidos, chistes, tiradas espirituosas
Já manifestei aqui minha adoração pela dupla Jerry Seinfeld e Larry David, ao dedicar uma coluna à comparação das séries televisivas “Seinfeld” e “Curb your enthusiasm”. Assisti a todos os episódios, de todas as temporadas, das duas séries. Até hoje, quando estou zapeando e caio em uma reprise de “Seinfeld”, paro para me deliciar com episódios que estou vendo às vezes pela terceira ou quarta vez. Para deleite da comunidade de idólatras de Seinfeld, ele está lançando nova série, “Comedians in cars getting coffee”, e no primeiro episódio conversa justamente com Larry David (o programa está disponível na web, num site com o mesmo nome da série). É um tipo de humor sofisticado, de base sobretudo verbal (é claro que misturada a um timing esplêndido de fala dos comediantes), que encontramos em abundância nos EUA e só muito raramente no Brasil.
Os programas têm duração curta (esse primeiro episódio tem 13 minutos) e estrutura mínima, quase vazia. Seinfeld recebe um convidado em um carro e o leva para tomar um café. É só isso. Não há trama (ao final desse episódio inaugural, Larry lhe diz: “Você finalmente fez uma série sobre nada”). Convidado para o tal café, Larry diz que prefere tomar um chá. Em seguida conta que sua ex-mulher costumava reclamar de sua preferência, dizendo que eles não podiam nem sequer tomar um café juntos. Larry manifesta sua perplexidade com a reclamação, já que não consegue ver nenhuma diferença, para os pequenos ritos do casal, entre ele tomar chá ou café; os dois estarão bebendo algo, segurando uma xícara, de onde sai um vapor etc. Nesse momento Seinfeld intervém com uma observação magistral.
Ele argumenta que existe sim uma diferença entre tomar chá e café. E a define primeiro por uma comparação : “Imagina que a gente sai pra comer, eu peço um sorvete e você uma salada. (cito os trechos de memória, logo eles estão inexatos) É a mesma coisa. A diferença é o mood.” É verdade, o chá e o café produzem atmosferas diversas, estão ligados a estados de espírito diversos. O café é expresso, o chá tem a lentidão oriental. O café desperta, o chá relaxa. Uma tipologia análoga surge no final do episódio, quando Seinfeld lembra que anos atrás Larry costumava fumar charutos. E as coisas que ele dizia envergando o charuto tinham certo poder de persuasão. Seinfeld enfatiza que era um charuto, jamais cigarros. E dessa vez é Larry quem explica: “São coisas totalmente diferentes. O charuto leva tempo, o cigarro é consumido rapidamente, às pressas. O charuto relaxa, o cigarro está ligado à ansiedade. Ora, quando você relaxa está aberto aos melhores pensamentos.”
Pois bem, eis aí observações de semiólogos. Compreende- se minha paixão por Seinfeld e Larry: a semiologia é, como o humor deles, um saber sobre o nada. É uma disciplina que não tem objeto a priori. E se exerce, nas mãos de seus melhores pensadores (Barthes sobretudo), sobre os fenômenos mais banais do cotidiano. Para mim, Barthes, Seinfeld e Larry são espíritos consanguíneos; uns são versões dos outros.
(continua)
Num prefácio aos textos selecionados de S. J. Perelman, o comediante português Ricardo Araújo Pereira estabelece, evocando uma distinção de Eric Idle, a diferença entre duas famílias de humoristas: os white faces e os red noses. “Os primeiros são mais contidos e cerebrais. Os segundos, mais histriônicos e irracionais. Os primeiros representam a mente; os segundos, o corpo.” O meu senso de humor nada capta dos palhaços de nariz vermelho, desse humor pastelão, físico, que Bergson chama de “cômico grosseiro”, no sentido de primitivo ou primal. Sou um adepto do humor dos caraspálidas, do humor de linguagem, de duplos sentidos, chistes, tiradas espirituosas. Tudo isso, claro, sempre junto da dimensão física do timing, oral e corporal.
Vendo a televisão brasileira, quase todos os programas de humor me entediam profundamente. Essa tradição dos white faces é entre nós bem fraca, me parece. Nos EUA ela é exuberante. Eles não param de inventar séries de humor sofisticado, como “The Big Bang Theory” e “Two and a half men”, em que a linguagem é inteligentíssima, os diálogos têm uma intensidade semântica diante da qual o humor dos seriados brasileiros parece café aguado. Afora algumas exceções, como “Os normais” (e talvez tudo da dupla Alexandre Machado e Fernanda Young), alguns imitadores geniais, o“Furo MTV”, entre poucos outros — o humor brasileiro me entristece. Fico com a impressão de que os textos quase nunca estão à altura dos atores. “A grande família”, por exemplo. Os atores são maravilhosos, mas os textos, quando comparados aos dos americanos, revelam-se diluídos.
Existem críticas que, na verdade, avacalham aquilo que criticam.
Mas a frase não definiu que "andar na linha" para uma mulher se refere à relação com "marido/dono". Não estaria você criticando um sentido que você mesmo atribuiu a algo que estava em aberto? A propósito, o "trem pegou" é no sentido dela ser atropelada pelo trem (se dar mal), dela entrar como passageira (se dar bem) ou propositalmente ambíguo?
O humor é sim SÓ humor, no sentido de que ele é bem menos importante e dita bem menos regras do que querem fazer parecer. Ele reflete a sociedade e as relações que nela existem, mas esse reforçar pela via humorística não é o método mais garantido de educar alguém nessa visão. Humor é bem menos importante do que os humoristas todos pensam
Não estou discutindo a importância relativa do humor no ranking dos discursos (alieas, valeu, antonio, por roubar um tempinho das suas leituras educativas para nos esclarecer). O que digo é que, se a fama de “transgressor” pode ter se esfumado nos tempos pós-ditadura, persiste uma suposição de neutralidade - muito presente no Seinfeld, por sinal. Seria uma crítica de costumes a serviço de alguma racionalidade despolitizada.
É por aí que tenho refletido.
Larte, eu acho que existem problemas tangíveis e intangíveis. Os intangíveis são resolvidos onde são criados, ou seja, dentro de nossas próprias mentes. Eu tenho vários, mas não tento convencer ninguém de que são reais, são somente minha percepção, minha idiossincrasia e eu tento lidar com isso da melhor maneira. O preconceito é algo muito combatido hoje em dia, mas eu acho que só pode ser solucionado dentro da mente de cada um atingido por ele. Mas essa minha visão não é excludente com a bandeira contra o preconceito, acho que é uma soma.
não entendi o que significa ser pego pelo trem
1. Laerte, no caso dessa frase especificamente, não consigo ver como a frase reforça a ordem estabelecida. Para mim, ela avacalha e afirma essa ordem, mas não a reforça.
2. Mesmo assim, acho um pouco ingênuo dizer que "humor é só humor". Para o bem ou para o mal, o humor vai muito além de um simples efeito linguístico. O efeito, aliás, só existe, acho eu, porque o humor trabalha com diversos elementos que nem sempre são visíveis nos diversos contextos (individual/privado ou social/público) nos quais ele se dá.
Aposto que muitos aqui já ouviram a piada de que "preto só é gente quando está no banheiro". E, num contexto nem tão distante assim, essa era uma piada engraçada para alguns muitos. Onde está o "só humor" dessa frase?
3. Danniel, não discordo inteiramente da sua proposta de problema tangíveis e intangíveis, mas acho que ela contém duas falhas muito graves no que diz respeito ao preconceito: (1) o preconceito é fruto de um contexto social específico que nem sempre pode ser identificado pelo indivíduo que o porta sem que ele seja confrontado com outro contexto (não acredito que alguém acorde um dia e decida ter um preconceito próprio); (2) o preconceito não é apenas uma ideia abstrata concentrada na mente de um indivíduo, ele também se configura como um ato concreto contra aqueles que sofrem as ações decorrentes dessa ideia. Assim, acho que o combate ao preconceito não pode acontecer apenas dentro de cada um de nós.
Por outro lado, muitas vezes me pergunto se muitas ações de combate ao preconceito não estão também cheias de preconceitos...
Jorge, como eu disse, não são abordagem excludentes. Sou sim contra o preconceito, mas também sou contra o direito de se ter preconceito. É preciso amadurecer essa questão por dois lados ao mesmo tempo. Mesmo por que, atualmente a luta contra o preconceito está gerando pessoas muito sensíveis, concorda? O bom humor que o diga...
Ninguém tem o direito de ser fraco.
Jorge, discordo de vc num ponto: acredito que o preconceito seja algo """natural""", algo que todos nós temos e todos nós teremos sempre. Cada um com uma coisa ou várias mas ninguém está livre e tão espiritualmente evoluído e iluminado (que coisa mais new wave!) que não possua preconceito algum sobre os outros seres humanos. É quase um mecanismo instintivo de defesa que não abandonamos.
Antonio, eu concordo que o preconceito é uma coisa que todos nós temos e sempre teremos. Mas não acredito que isso faça dele algo "natural", porque a capacidade de julgar o outro e de caracterizá-lo de diversas maneiras (benéficas ou não) é algo que adquirimos ao longo da vida e não algo que nós trazemos para vida. Acho que o preconceito é fruto de um contexto social e histórico no qual o indivíduo está inserido.
Natural e instintivo talvez seja o medo em face do outro ou do novo. Mas, por mais que o medo seja fruto da ignorância (o não conhecer), ele sozinho não faz uma pessoa deliberadamente espancar outra na Av. Paulista por conta da sexualidade, não faz um grupo indivíduos ter sua cidadania e sua humanidade anuladas em razão da cor de sua pele ou da origem de seus antepassados, não obriga as mulheres a usar "terninhos" para serem aceitas e bem sucedidas no mundo corporativo (ao passo que homens de "sainhas" tornam-se um escândalo). Não, para que isso aconteça é preciso que haja um conhecimento amplamente compartilhado em uma sociedade que diga que toda dissonância daquilo que é tido como normal ou padrão seja corrigida, ridicularizada, anulada ou exterminada.
É esse tipo de conhecimento – que serve para tapar o medo e não para esclarecê-lo – que gera o preconceito e justifica as ações derivadas dele.
Mas tudo isso é um grande “EU ACHO” da minha parte... um outro “eu acho” meu diz respeito ao que o Danniel comentou sobre a luta contra o preconceito (se é que podemos chamar assim) gerar pessoas sensíveis demais. Essa “luta”, essa sensibilidade e a busca pela “evolução e iluminação espiritual para extinguir o preconceito” acabam degringolando para a grande questão existencial do “politicamente correto” ou “politicamente incorreto”. Eu ainda to trabalhando para aclarar este raciocínio, mas acho que esse dois rótulos (como é comum com os rótulos) trabalham eles próprios com engrenagens preconceituosas (ou “preconceituadoras”). É mais ou menos assim: “Essa piada tem preconceito, é politicamente incorreta. Então, para resolver o caso, ninguém conta mais essa piada (ou, pelo menos, não em público) e fica tudo certo”. Mas isso não acaba com o preconceito que foi expresso pela piada, acaba?
Laerte, como você é foda!
Vamos fazer uma outra interpretação possível? A frase tem duas orações: "A mulher que andava na linha" e "o trem pegou". A segunda é subordinada, e o sujeito é a mulher. Poderíamos entender assim: A mulher que andava na linha, que era disciplinada, chegou na hora certa na estação e conseguiu pegar o trem. A mulher o trem pegou. A outra, transgressora, ficou até tarde na rua, acordou com enxaqueca, chegou atrasada na estação e perdeu o trem. Depois foi despedida e, para sobreviver numa sociedade capitalista, foi obrigada a se sujeitar a um casamento opressivo com um intelectual de classe média. A conclusão não poderia ser mais clara: "Disciplina é liberdade" (Renato Russo).
Janos, vai estudar gramática, vai.
Gosto da observação, Laerte. Deleuze já disse que "a propaganda é a alma do negócio".
Com relação ao "só" humor, considero importante não pensarmos o humor como algo em si, mas ligado à vida. O risco de desejarmos alienar um discurso das estruturas é não percebermos que forças atuam ali.
Em tempo: o pessoal falou em chiste. Bem. Há algo do chiste que pode ser liberador, mas, atentemo-nos: muitas vezes o inconsciente pode cair em mera reprodução.
'a mulher que andava na linha o trem pegou' está sintaticamente desordenada.
na ordem direta (sujeito-verbo-objeto): o trem | pegou | a mulher | que andava na linha.
'o trem' é sujeito.
'a mulher', que tristeza, é objeto (expliquei a piada? é só humor.)
'que andava na linha' é o que cria a relação de subordinação de objeto direto em relação ao 'trem que pega' algo/alguém (a mulher). logo:
o trem pegou: oração principal
a mulher que andava na linha: oração subordinada substantiva objetiva direta.
pelo visto, tem faltado disciplina. :(
Que loucura.
Hahaha, seu louco!
Muito boa sacada, Laerte. Mas a frase só tem graça quando emitida por mentalidade masculinista ou machista, já que flagra o que não pode ser admitido pelo falante, que é a possibilidade de sua mulher não andar na linha. É do choque entre o aspecto reforçador da ordem e de sua fratura que surge a graça.
Não sei se é pra me gabar, mas pra mim a frase não tem graça nenhuma.Acho eu que está caindo em desuso.
Huahuahuahuahua. É hilário saber que a gente se concentrara no erro gramatical e esquece o resto: "A mulher, que andava na linha, pegou o trem". Quer dizer, transgressão tem limites, né? Transgredir a gramática, aí não vale. Agora eu é que tenho que andar na linha...
O papo do Laerte tá simples, didático e claro se a intenção é exemplificar como se pode aparentar combater algo dando mais munição ao vilão. Sobretudo usando o humor então aí é que potencializa. Vale lembrar que "pegar" para os mais jovens é envolver e não "dar uma peixada" e atirar longe. Gostei muito de ler as opiniões dos demais pois curto Semiótica e curto saber que há outros como eu que ficam tristes com os textos fracos que são dados a grandes atores. Dessa forma podemos dizer que os artistas brasileiros que usam a imagem, como Laerte, estão "lendo a vida em tempo real" ou ... tem o privilégio de ficar fora da TV que faz humor pra massa. Fatima /Laguna/SC
duas coisas ficam bem perceptíveis nesse tópico:
1 - a maioria dos homens não entende questões de gênero
2 - mesmo sem entender buscam uma desculpa tentando tirar o corpo fora, o usual "deixa disso", "não é por aí"
tem que ver isso aí pra ontem.
Quer dizer que neste tópico ficou bem perceptível que a maioria dos homens não entende questões de gênero? Há pelo menos duas posições sobre as questões de gênero. Entender não é o mesmo que ser a favor ou contra uma dessas posições.
Digo isso só para que não fique parecendo que se está afirmando algo do tipo: "Se você não concorda é porque não entende".
O Laerte está claramente defendendo um humor transgressor. Ele quer desmoralizar a "linha" enquanto imagem de uma ordenação moral. Essa desmoralização tem dois sentidos: de deslegitimação e de crítica à moralidade tradicional. Como ele mesmo disse, ele quer reconhecer a vigência de práticas de vida social mais relaxadas. O que é vigente é uma ausência de referenciais morais com base na tradição. Isso é bastante acertado. Estamos num processo de destradicionalização dos valores. Deixa de ser lícito, portanto, impor uma ordenação moral rígida. O engajamento contra essa a imposição violenta da ordem leva à adoção da transgressão como manifestação de uma posição, como ataque a uma visão de mundo, e isso se dá no no campo cultural, no qual o humor tem um papel indispensável.
Qual a visão de mundo que se está atacando? Esta que está claramente exposta aí: na qual a mulher sofre as piores consequências ao seguir o ordenamento moral que foi criado e imposto por homens. O que é ética para o homem é morte para a mulher. Morte no sentido de submissão, perda da autonomia. A frase, que expõe esta situação de modo humorístico, também soa como uma ameaça, o que reforça a ordem estabelecida. É isso, não é? Pois é, isso é muito interessante, mas é menos de metade da história. É resultado de uma percepção profunda, porém, temo, muito pouco ampla. Eu poderia citar um monte de motivos porque essa análise é parcial e inadequada. Mas ninguém iria se importar com isso, então fiz uma piada. Agora, se eu não posso falar mais nada, fica difícil.
tem uma alegação válida aí. mas desde que ela não redunde em outra atitude moral do tipo "vamos então censurar piadas desse tipo" - que se traduz nos termos do "politicamente incorreto" dessa nova polícia moral que está gritando todos os dias por aí. seria interessante se essa constatação virasse outra coisa: como uma lanterna que iluminasse uma melhor transvaloração... (será que fui claro?)
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